Na Montanha, na ressaca do referendo

Atendendo às condições climatéricas e à insistência na meditação no topo da montanha, caso me aguente na escarpa, esta será provavelmente a minha última entrevista ao proeminente Guru.

- Que lhe parece do resultado do referendo?
- Sempre me pareceu despropositado este referendo. Generalizadamente as pessoas incorporaram que a criminalização do aborto constitui um absurdo e portanto os deputados poderiam ter alterado a Lei, sem necessidade de referendar. É que a Justiça deve reflectir o sentimento dos cidadãos. Algumas deputadas do PS, com bom senso, tentaram essa via, porém... contar espingardas dá sempre mais luta. E faz bem ao ego, dirão alguns. Espero que tenham juízo suficiente para evitar festejos, com ou sem foguetada. A abstenção deve ser suficiente para refrear o ânimo dos mais ousados. E deve também ser suficientemente volumosa para confirmar o disparate que foi o referendo.

- Desta vez até há gente "famosa" da direita a votar SIM.

- A que famosos se refere?

- Aqui, se não se importa, quem faz as perguntas sou eu. Não reconhece que as revistas especializadas, através dos seus "famosos", conseguem fazer opinião?

- A única coisa que interessa a essas revistas é secundar as opiniões. Para além do dinheiro, não estou a ver outras motivações. A coisa funciona basicamente assim: Primeiro convencem o povo que a pessoa A ou B é muito importante. Convém que seja uma pessoa disposta a deixar-se fotografar ou filmar o dia todo - em 24 horas alguma coisinha de jeito há-de fazer, ou dizer. Depois de estarem uns milhões convencidos, o trabalho mais difícil está feito. Há excepções. Na linha de Cascais, o mínimo para aproveitar alguma coisa, são 48 horas.
- Como assim?

- Pode fazê-lo com as mãos, desde que salvaguarde a devida higiene, o resto é etiqueta. Esteja à vontade. Não sei é como vai largar a rocha...

- Peço desculpa, queria que me explicasse melhor o seu raciocínio a propósito do interesse que os "famosos" suscitam.
- Com certeza. Quem não gosta de estar a par da vida de pessoas importantes? Já imaginou quanto vale você saber que uma tia famosa fez uma limpeza de pele em profundidade -a limpeza nunca passará da derme, mas... ainda assim, em alguns casos, já é uma coisa muito profunda. Depois, para além disso é só inventar, o que é sempre interessante. Mesmo que você escreva sobre um ex-cunhado do(a) famoso(a), vende.
- Pois é, já ninguém investe nem reconhece o esforço continuado, nem o valor social do trabalho.
- Ninguém pensa a médio prazo, muito menos a longo. Isso é compreensível, individualmente todos percebemos que a qualquer momento poderemos deixar de ser, a esperança de vida é estupidamente curta. Porém, as regras do jogo é que deveriam ser outras.
- Como?
- Com políticas que incentivassem o investimento na família, na educação dos filhos, no acompanhamento dos idosos...
- Tem esperança?
- Há alternativas. As Escolas por exemplo poderiam passar a dispor de, pelo menos, um Carlos Castro por agrupamento. Alguém com jeito para a coscuvilhice. Os professores responsáveis pela elaboração de jornais escolares deveriam dedicar-se afincadamente a esses conteúdos. Uma coisa tipo blog do Millenium - BCP, o chefe olha e toda a gente sabe para quem.
- Está a falar a sério?
- Provavelmente vão pensar que passei pela novíssima loja de Aveiro, mas garanto que, até o "Porto", que adicionei na confecção do jantar, evaporou.

- Acha mesmo?

- Não sou eu, é a realidade. Veja, mesmo a esquerda acha louvável que as pessoas entreguem o dinheiro às tias das revistas cor-de-rosa, ao tio Belmiro, ao toque do telemóvel. A Esquerda continua ver a Educação universal e gratuita. Olha para a Constituição como o Islão olha para o Corão. Como se as pessoas ainda tivessem de optar entre pão e educação. Mesmo os blogs do pessoal da esquerda não têm publicidade, são tão generosos que concedem esse espaço à direita.

- Vê alguma possibilidade dessa esquerda mudar de opinião?

- Espere pelos próximos tempos, pode ter algumas surpresas. Quem sabe se ainda teremos uma tentativa de reabilitação da Ministra da Educação. Não posso adiantar mais que isso.

- Acredita mesmo nessa possibilidade?

- Há de facto uma possibilidade mínima, mas ela existe e não deve ser desprezível. O mesmo não posso dizer daquele Ministro que tem problemas de pragmática: quando acerta no contexto, falha no tópico e vive-versa. Escolher a China para evidenciar a vantagem, por comparação, dos baixos salários em Portugal... é mesmo para picar a moleirinha do PS adormecido.

Agora, se não se importa, agradeço que me permita mais algum tempo de meditação.

- Eu é que agradeço a concess...chiça tenho as mãos em carne viva...